15 janeiro 2006

Ainda Kassange

Com o título “As guerras de memórias de um massacre em Angola” o Jornal de Notícias, sob a pena de Carlos Gomes traz, hoje, um duplo-artigo (estranhamento o sítio do JN não inclui esta matéria) sobre a questão “Baixa do Cassange” e o aproveitamento político da mesma bem assim a impossibilidade dos historiadores poderem quantificar as vítimas pela gritante falta de registos disponibilizados por quem de direito.
Não se questiona aqui a manutenção de um número absurdo, aproveitado, em dado tempo, pelo regime angolano no pós-independência que, conforme conversa havida por mim com o referido jornalista mostrei ser impossível que poder ser provada e quantificada nos termos que alguns analistas do regime apresentaram – só quem não conhece a hidro e orografia do terreno poderia admitir estes números como verdadeiros e na forma como anunciados – nem que continue a aceitar como admissível datas que também lá estão referidas.
Que os historiadores angolanos – e portugueses – tenham dificuldades em gerir o tema pela impossibilidade de aceder a certos registos ainda em posse de Portugal e ainda temporalmente resguardados é natural que se conjecture; incorrectamente, mas politicamente aceitável.
Agora que se dê guarida a uma informação de um investigador espanhol que se diz na posse de documentos secretos sobre Portugal, dar como admissível que o massacre não aconteceu em 4 de Janeiro, mas entre 24 de Janeiro e 2 de Março é realmente desconhecer a realidade angolana do tempo. Que ele afirmasse que a crise começou ainda em finais de 1960 – a “greve” (mais correctamente, a contestação social) ocorreu na última quinzena de Dezembro de 1960 e teve o apogeu, supostamente (aqui entre o chamado arquivo costumeiro ou oralidade) no massacre de 4 de Janeiro – e que se tenha prolongado até meados de Março com a insurreição armada da UPA, dando origem a luta de libertação armada angolana, seria admissível essa teoria. A matéria referida pelo investigador espanhol Josep Cervelló e citada no JN refere-se, claramente, à insurreição da UPA, em Março – embora não nos efectivos contornos por ele descritos – e não à crise de Cassange.
Agora teorizar que a crise ocorreu no período indicado é estar mal informado ou, então, a História terá de ser toda reformulada.
É que apesar de melhor preparados, os belgas – na prática os verdadeiros donos da Cotonang – já não estava no local para poderem “armazenar” historicamente os acontecimentos. Os poucos que lá estariam eram refugiados do Congo e, naturalmente, anti-Bélgica e pró-governo português. Logo, e mesmo que os números fossem gigantesco como parece terem sido, nunca iriam divulgá-los com a amplitude minimamente correcta; as comunicações eram deficientes; e, finalmente, caso estivessem no terreno com o bombardeamento que ocorreu, teriam perecido tal como os angolanos, não ficando ninguém para contar. Só as autoridades que lá foram mais tarde… muito mais tarde, e os militares que estiveram presentes em combate(?).
Mas, o levantamento desta questão traz uma nova contrapartida para a análise político-histórica dos grandes acontecimentos afro-lusófonos das décadas de 50/60: o efectivo e descomprometido debate das guerras ultramarinas e uma pressão para que os factos sejam melhores estudados por ambas as partes, sem constrangimentos e claramente.
Só que para isso, o arquivo histórico e militar português tem de ser aberto à comunidade científica.

ADENDA: Este apontamento foi igualmente editado no Notícias Lusófonas, na rubrica Opinião.

1 comentário:

CN disse...

A História escreve-se com base em muitas mentiras politicamente correctas, como bem sabemos. A verdade, normalmente, anda entre os vários relatos oficiais dos acontecimentos. Esses equívocos serão difíceis de contrariar, ainda mais se os temas não são discutidos, debatidos, contestados.