Com a devida vénia, transcrevo, na íntegra, um artigo de opinião de Jerónimo Belo, publicado no Suplemento Cultural do Jornal de Angola (que, infelizmente, não se consegue aceder via online) de 29.Jan.2006, facultada pelo próprio autor.
De ressalvar, que a morte de Beto Gourgel foi largamente noticiada e lamentda, desde o Djibuti ao Sudão; de Camarões a imprensa árabe e europeia. Em Portugal pouco, ou nada, se falou - que eu visse...
"..................................................Tem dias que a gente se sente
....................................................................Como quem partiu ou morreu
....................................................................A gente estancou de repente
....................................................................Ou foi o mundo então que cresceu...
...................................................................Chico Buarque, in: Roda Viva
Estou a ver-te resignado e infeliz depois de tudo isto. E admito que não tenhas conseguido ainda o tempo e tranquilidade para a leitura da linda mukanda que o Manuel Dionísio te enviou. Se por aí a moda da censura à correspondência ainda não se instalou, a carta chegar-te-á brevemente. Mais dia menos dia. Entretanto vai compondo a próxima trova. Tempo aí é coisa que não te vai faltar.
Meu caro Beto,
Escrevo-te na amargura da tua partida.
Podias ter avisado aos mais chegados, aos mais íntimos e também aos que continuam a dar valor e a acreditar serenamente em certos “ismos”. E quando o noticiário às 7 da manhã no dia da Cidade – e de Tom Jobim – informou ao país que, num gesto egoísta de corporativismo divino, os Deuses haviam exigido a tua presença, cheguei a admitir que poderia tratar-se de um engano. Afinal existem tantos Betos...
Mas não era engano. Tratava-se mesmo do músico e cantor Beto Gourgel; aquele que do alto de um apartamento na Rua da Missão olhava para o mundo já com alguma indiferença, apesar de ter fundamentado a sua existência em valores e princípios inegociáveis.
Numa altura em que o mundo vive uma enorme sensação de vazio e vê – dia após dia – esfumarem-se as causas emancipadoras do nosso destino colectivo, sabe bem, tem um gosto muito especial, conviver, partilhar – nessa existência empobrecida de projecto – algum tempo com alguém com novas ambições, novos sonhos, com quem se reaprende a regressar ao sentido sublime e único da vida partilhada.
Numa altura, dizia-te, em que a usura da vida quotidiana e a erosão da política – espectáculo, nos convida para os braços gorduchos e tentadores do banal, do imediato, do instantâneo, faz todo o sentido ter um amigo como tu sabias sê-lo e conhecer gente como disse o Manuel Alegre “ Alguém que resiste, Alguém que diz não”.
Foi assim que me habituei a admirar-te de longe, quase em silêncio, a seguir-te o rasto e o trajecto com altos e baixos, dissonâncias, crescendos e diminuendos como nas partituras de Mozart, desde aquele dia – já antigo, em que me apresentaste aqui em Luanda o Zeca Afonso e o Adriano Correia de Oliveira – teus companheiros em Portugal.
Contigo, Meu caro Beto, partilhei belas estórias, o inesquecível programa na LAC do Manuel Rui “Cola & Gengibre”, sessões de música, violões, canções. E, sobretudo, sonhos.
E, por amarga ironia, partilhei ainda contigo essa amputação incurável que é a perda de um filho; amputação para a qual não existe prótese, nem Medicina Física e de Reabilitação. Não existe nada. Aprendemos à custa de um inenarrável sacrifício que a “ saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”, como diz o Chico Buarque.
Beto: pelo teu exemplo nas pequenas coisas continuo a acreditar que nós – os da “esquerda festiva” que mistura Marx com Semba e Jazz com algum vinho tinto, temos ainda a capacidade de acreditar na nossa vontade de contribuir para se fazer História e nos valores da solidariedade humana que resistem – teimosamente – à caducidade iminente. Aqui, ali, em qualquer lugar, como diz aquela bonita cantiga dos Beatles do nosso tempo de Liceu.
Querido Companheiro,
É muito difícil escrever uma carta a um amigo com o qual se partilhou tanta coisa, correm-se riscos. Mas persiste, em todas as amizades, uma espécie de terra incógnita, de zona protegida, que poucos conhecem. Às vezes nem o próprio.
Há tanta coisa que desconheço, mas no entanto, posso afirmar:
- De ti direi simplesmente que fizeste da Trova a tua mensagem política de homem de esquerda (na era da Globalização um rótulo sem sentido próprio de países subdesenvolvidos) e de cidadão do mundo... E a tua existência foi uma vida de causas.
E recordo-me da tua argúcia, do humor criativo e às vezes corrosivo, a sensibilidade, a ausência de papas na língua. E sobretudo da tua capacidade de afecto e a forma fortíssima como acreditavas naquilo que fazias e como pensavas que a cultura era (é) um direito de todos.
E guardarei aquela tua inquietação antiga, confidenciada certa manhã na Biker:
-Não sabem muitos cantores se hão-de cantar Lisboa ou Cunene.
Meu Caro Beto,
Nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que poderíamos ser.
Está tudo aí. Todos somos testemunhas e actores. Os processos estão aí, desafiando-nos, exigindo um esforço de análise talvez mais árduo do que aquele que foi realizado pelos nossos mais-velhos, os nossos mestres.
Não sei exactamente (alguém saberá?) em que medida os processos em curso alteraram as condições sociológicas da nossa existência, e em que direcção.
Vivemos uma espécie de “ crise do destino”, como disse Walter Benjamin.
É possível que um dia a História nos pergunte a todos:
-Afinal, quem são vocês? O que pretendem? O que querem ser?
Deixa lá. Temos hesitado em enfrentar corajosamente questões tão complexas e radicais. É melhor falar de macroeconomia, sobretudo agora com a subida do preço do petróleo.
E ao qu’isto chegou, a urgente invenção do futuro com vista ao resgate, reinvenção e desenvolvimento da Nossa Terra, vai tornar-se muito penosa. Para todos.
AtéJazz Meu Irmão Beto: és o último trovador."
....................................................................Como quem partiu ou morreu
....................................................................A gente estancou de repente
....................................................................Ou foi o mundo então que cresceu...
...................................................................Chico Buarque, in: Roda Viva
Estou a ver-te resignado e infeliz depois de tudo isto. E admito que não tenhas conseguido ainda o tempo e tranquilidade para a leitura da linda mukanda que o Manuel Dionísio te enviou. Se por aí a moda da censura à correspondência ainda não se instalou, a carta chegar-te-á brevemente. Mais dia menos dia. Entretanto vai compondo a próxima trova. Tempo aí é coisa que não te vai faltar.
Meu caro Beto,
Escrevo-te na amargura da tua partida.
Podias ter avisado aos mais chegados, aos mais íntimos e também aos que continuam a dar valor e a acreditar serenamente em certos “ismos”. E quando o noticiário às 7 da manhã no dia da Cidade – e de Tom Jobim – informou ao país que, num gesto egoísta de corporativismo divino, os Deuses haviam exigido a tua presença, cheguei a admitir que poderia tratar-se de um engano. Afinal existem tantos Betos...
Mas não era engano. Tratava-se mesmo do músico e cantor Beto Gourgel; aquele que do alto de um apartamento na Rua da Missão olhava para o mundo já com alguma indiferença, apesar de ter fundamentado a sua existência em valores e princípios inegociáveis.
Numa altura em que o mundo vive uma enorme sensação de vazio e vê – dia após dia – esfumarem-se as causas emancipadoras do nosso destino colectivo, sabe bem, tem um gosto muito especial, conviver, partilhar – nessa existência empobrecida de projecto – algum tempo com alguém com novas ambições, novos sonhos, com quem se reaprende a regressar ao sentido sublime e único da vida partilhada.
Numa altura, dizia-te, em que a usura da vida quotidiana e a erosão da política – espectáculo, nos convida para os braços gorduchos e tentadores do banal, do imediato, do instantâneo, faz todo o sentido ter um amigo como tu sabias sê-lo e conhecer gente como disse o Manuel Alegre “ Alguém que resiste, Alguém que diz não”.
Foi assim que me habituei a admirar-te de longe, quase em silêncio, a seguir-te o rasto e o trajecto com altos e baixos, dissonâncias, crescendos e diminuendos como nas partituras de Mozart, desde aquele dia – já antigo, em que me apresentaste aqui em Luanda o Zeca Afonso e o Adriano Correia de Oliveira – teus companheiros em Portugal.
Contigo, Meu caro Beto, partilhei belas estórias, o inesquecível programa na LAC do Manuel Rui “Cola & Gengibre”, sessões de música, violões, canções. E, sobretudo, sonhos.
E, por amarga ironia, partilhei ainda contigo essa amputação incurável que é a perda de um filho; amputação para a qual não existe prótese, nem Medicina Física e de Reabilitação. Não existe nada. Aprendemos à custa de um inenarrável sacrifício que a “ saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu”, como diz o Chico Buarque.
Beto: pelo teu exemplo nas pequenas coisas continuo a acreditar que nós – os da “esquerda festiva” que mistura Marx com Semba e Jazz com algum vinho tinto, temos ainda a capacidade de acreditar na nossa vontade de contribuir para se fazer História e nos valores da solidariedade humana que resistem – teimosamente – à caducidade iminente. Aqui, ali, em qualquer lugar, como diz aquela bonita cantiga dos Beatles do nosso tempo de Liceu.
Querido Companheiro,
É muito difícil escrever uma carta a um amigo com o qual se partilhou tanta coisa, correm-se riscos. Mas persiste, em todas as amizades, uma espécie de terra incógnita, de zona protegida, que poucos conhecem. Às vezes nem o próprio.
Há tanta coisa que desconheço, mas no entanto, posso afirmar:
- De ti direi simplesmente que fizeste da Trova a tua mensagem política de homem de esquerda (na era da Globalização um rótulo sem sentido próprio de países subdesenvolvidos) e de cidadão do mundo... E a tua existência foi uma vida de causas.
E recordo-me da tua argúcia, do humor criativo e às vezes corrosivo, a sensibilidade, a ausência de papas na língua. E sobretudo da tua capacidade de afecto e a forma fortíssima como acreditavas naquilo que fazias e como pensavas que a cultura era (é) um direito de todos.
E guardarei aquela tua inquietação antiga, confidenciada certa manhã na Biker:
-Não sabem muitos cantores se hão-de cantar Lisboa ou Cunene.
Meu Caro Beto,
Nunca foi tão grande a distância entre o que somos e o que poderíamos ser.
Está tudo aí. Todos somos testemunhas e actores. Os processos estão aí, desafiando-nos, exigindo um esforço de análise talvez mais árduo do que aquele que foi realizado pelos nossos mais-velhos, os nossos mestres.
Não sei exactamente (alguém saberá?) em que medida os processos em curso alteraram as condições sociológicas da nossa existência, e em que direcção.
Vivemos uma espécie de “ crise do destino”, como disse Walter Benjamin.
É possível que um dia a História nos pergunte a todos:
-Afinal, quem são vocês? O que pretendem? O que querem ser?
Deixa lá. Temos hesitado em enfrentar corajosamente questões tão complexas e radicais. É melhor falar de macroeconomia, sobretudo agora com a subida do preço do petróleo.
E ao qu’isto chegou, a urgente invenção do futuro com vista ao resgate, reinvenção e desenvolvimento da Nossa Terra, vai tornar-se muito penosa. Para todos.
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