10 junho 2007

David Mestre in memoriam

(David Mestre, foto daqui)
De Manuel Dionísio recebi via e-mail o texto abaixo, que muito me honrou.
Porque sabia que sairia na secção cultural do Jornal de Angola, órgão onde Dionísio é o editor das grandes reportagens, achei por bem esperar, primeiro, a sua publicação no JA o que aconteceu na edição de 10 de Junho de 2007.
Assim, aqui vos deixo uma homenagem de Manuel Dionísio ao grande poeta David Mestre no ano que decorrem 30 anos pela publicação de “Do Canto à Idade” e quase 9 pela sua morte.
David Mestre, pseudónimo de Luís Filipe Guimarães da Mota Veiga, publicou, ainda, “Nas Barbas do Bando” (1985), “O Relógio de Cafucolo” (1987), “Nem Tudo é Poesia” (1987), “Obra Cega” (1991), “Subscrito do Giz – 60 Poemas Escolhidos” (1996) e “Lusografias Crioulas” (1997); antes da independência David Mestre terá publicado “Kir-Nan” (1967), “Crónica do Guetto” (1973) e “Dizer País” (1975).
Podem ler um poema de David Mestre no Malambas.

Faz este 2007, trinta anos que foi publicado "Do Canto à Idade", do poeta David Mestre, falecido em 1998, a 13 de Junho, na margem Sul do Tejo, à altura de Lisboa.
Faria, a 3 de Agosto, 59 anos. E se outra forma não houvesse de pegar na banalidade de "os poetas não morrem, revivem nos seus versos", roçando uma certa vulgaridade sobre a imortalidade, que de papel passado e registado, ainda assim, só para membro da Academia de Letras, ocorre-me aqui lembrar que é bem verdade que a obra deixada vai vivendo, e que há quem, como eu, festeje aniversários de livros e poetas… mortos.
Pensava eu, ao propôr-me escrever de um poeta já falecido, que admirei e conheci em vida e de cujos versos continuo a gostar, que há pessoas que fazem romagens ao túmulo de Baudelaire, de Jim Morrison, de John Lennon, de Shelley, sei lá, mesmo de artistas de outras artes que não as letras, não me ocorrendo outro angolano que não Agostinho Neto, mas no seu caso há muitas outras razões ao dela da sua personalidade literária.
E lembrei-me disso ao reunir as informações sobre aquele que em vida, tive por amigo, companheiro e cúmplice, a quem fiquei a dever algumas aparadelas aos versos que, há trinta anos, cuidei publicáveis, o ensinamento dos truques que sempre tem cada arte, dicas várias sobre roteiros de leitura, nomes, História e enquadramentos diversos.
Recordei de um recorte de jornal que foi enterrado no cemitério da Costa da Caparica, uns dias depois da aziaga tarde de um sábado, 13 de Junho de 1998, e que, se calhar, lhe devo, ou melhor, me devo, uma visita, um dia destes, passe eu por lá perto e um romantismo que agora me escorre para o papel não se afigure piegas à memória de quem, em vida, até expressou o desejo de ser cremado e as cinzas lançadas na baía de Luanda.
Posto isto, aos desconhecedores introduzo, e recomendo, a obra - e mais enfaticamente, os versos - do poeta David Mestre. Obra que se não pode destacar pela extensão, há-de ter por força virtude de qualidade maior.
Citemos, e procurem-se, as obras em poesia que, em meu entender, são essenciais: "Crónica do Guetto" (73), "Do Canto à Idade" (77), "Nas Barbas do Bando" e "Subscrito a Giz". Procurem-se numa qualquer admissível livraria de Luanda ou Lisboa, quiçá Maputo, para regozijo, é claro, dos amantes de poesia.
Procure-se - insisto - pelo prazer garantido da leitura de um poeta, e dos poemas que converteu, singular. Para descobrir uma poesia de contenção contínua, de clímax permanente, que é sua invenção, trabalhos de filigrana em aço.
Se tivesse a ousadia, ou aptidão e talento para tal, conforme foi o caso de David Mestre, único angolano, durante largos anos, membro da Associação Internacional de Críticos Literários, digo, se me atrevesse a empunhar por momentos o bolígrafo de crítico literário, com a incumbência de caracterizar a poesia do David Mestre, tentaria seguir, ao seu próprio estilo, e não necessariamente por esta ordem: a concisão, (conteúdo), a sonoridade (rítmica), e o trabalho oficinal.
Convenhamos que são três abordagens díspares. E, de trás para a frente, cometo aqui uma inconfidência: o trabalho oficinal é de capital relevo na sua obra. Atente-se. E não apenas, já agora, no que toca à pessoa, mas, de forma abrangente, às diferentes facetas do escritor, como jornalista, crítico literário ou ensaísta, se bem que aqui se pretenda dar saliência ao poeta.
Pessoa, Fernando, era de opinião que não havia poemas longos, mas antes uma série de momentos poéticos mais ou menos longos, ligados por uma argamassa mais ou menos poética.
Tive o privilégio de conviver literariamente com o David Mestre, e assisti à transformação que foram sofrendo alguns poemas seus, até serem dados por acabados, e publicados, ouvindo-o dizer esses versos com o espaço de vários meses, e acompanhando, portanto, a transformação do texto.
Atente-se à economia de pronomes e advérbios, à avareza do que se poderia considerar a tal "argamassa mais ou menos poética", e teremos para saborear uma doce poesia substantiva, arredia de conjunções, mesmo quando a mágoa se pressente. E é tanta a prostração quanto a rebeldia, quando a lírica se detém no social.
Será, talvez, por decurso desse tal trabalho oficinal que a sua poesia se torna tão concisa, quase matemática. Aliás, quem com ele teve o ensejo de privar mais intimamente terá tido seguramente oportunidade de o ouvir comentar a questão da produtividade poética. Da sua e da dos outros, ele, que fazia questão de se manter a par do que se ia publicando em língua portuguesa, cultivando uma ligação epistolar com alguns dos maiores poetas e escritores de língua portuguesa. De Craveirinha ou Mia Couto, a Fernando Ferreira de Loanda, Cabral Neto ou Pires Laranjeira, correspondência, revistas e livros, muitos, alimentavam a sua caixa postal na ex-Brito Godins, e supriam a magra dieta das importações da Lello. A mim iam-me cabendo uns generosos presentes e o espólio dividido de umas bibliotecas pessoais abandonadas por Luanda, em circunstâncias diversas, com alguns cúmplices mais, como o Lopito Feijó se deve lembrar.
O David perguntava-me, segurando, por exemplo, a "Poesia Toda", um calhamaço de respeito, de Herberto Hélder: "
Que julgas tu que se faz para conseguir uma coisa destas. Estes gajos, impõem-se a si próprios uma disciplina de sentar à secretária para escrever durante aquelas xis horas todos os dias. E dali não levantam, sem que saia aquele mínimo". Havia aqui uma ponta do génio de "enfant terrible" que David cultivava, ao mesmo tempo que assumia o tom de responsabilidade profissional com que, alta madrugada, discutíamos apaixonadamente a incontornável beleza da mulher e a arte que nos consumia.

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